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sábado, 10 de julho de 2010

A Revolta das Cifras

Ariosvaldo era um sujeito comum mas não suportava nada que era considerado legal. Uma de suas maiores implicâncias era com música, era danado para censurar o que estava na moda. Isto foi lhe causando problemas a ponto de se sentir amedrontado.
Costumava conversar com gente mais velha porque se sentia melhor, gente velha é forte para as adversidades. Chegando na casa da avó, percebeu que o som estava alto e a idosa dançava ao som do refrão fácil; mãos nas costas, a outra segurando a bengala e as pernas finas tentando ritmar ao som do batuque. Soube depois que conseguiu virar cantora, fez dupla com Dona Emengarda.
Procurar os amigos seria inútil, hora destas já estariam com os olhos vidrados e balançando as cabecinhas ao som das frases-feitas. A Aninha cantava segurando no peito, pensando no amor que já teria partido, justo ela que namora há 12 anos, mãe-solteira e está quase se casando. Paulo Roberto é o maior cachorrão, não fica duas semanas com a mesma mulher e incompreensivelmente se viu apaixonado, bailando e olhando para o céu imaginando a amada que não tinha (logicamente por escolha e gosto).
Meio sem entender, o desagradável Ariosvaldo procurou a família. Pensou que mesmo o pessoal de casa sendo atingido pela onda musical, entenderiam o caso e dariam a maior força naquele momento delicado. Foi exatamente o que aconteceu. Com muito esforço, a família de Ariosvaldo comprou fones de ouvido e tentava não repetir os refrões. Mas o barulho nas ruas era desesperador, os carros passavam com os sons no último volume e a casa balançava; Ariosvaldo começou a enlouquecer.
A saída seria botar CD pra tocar, mas todos eles haviam sido inacreditavelmente convertidos. Suas seleções de clássicos ordenavam-no a bater nas botas e nas palmas das mãos, Chico Buarque compunha pra Marieta clamando pela reconciliação, João Gilberto fazia clipes em festas de rodeio, montava nos bois e esporava os coitados até sangrar. Mas os bichos também já dançavam mesmo no brete, ansiosos para participarem da festa, sempre em duplas. Bois-de-carro?
Em Brasília, Gil compunha às dúzias, iniciando campanhas. E o povo candango empoeirava as botas, fazendo a terra subir na secura do Planalto Central. Dona Marisa ordenava que as calças do presidente viessem com numeração inferior, seria uma oportunidade e tanto para Luís Inácio, que cantava em nome do povo.
Em meia hora a casa de Ariosvaldo já estava cercada. Inspirado na Revolta da Vacina, o povo exigia o linchamento do rapaz. Com botas finas e chicotes na mão, a população derrubou a porta, avançou afoita e inutilmente desferiu golpes nos ouvidos de Ariosvaldo, que já estava morto bem antes da residência ser invadida.

Um comentário:

  1. Não precisa comentar um texto perfeito. Da sintaxe à ideologia!

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